sexta-feira, março 09, 2012

Monte Trigo: ainda existem lugares assim?


Queres conhecer um lugar em Cabo Verde onde ainda as pessoas deixam a porta aberta e um vizinho entra para atender o telefone sem levar nada consigo ao sair? Ou onde se coloca o colchão na rua para dormir nas noites quentes e a subida da maré é a maior preocupação? Se já estás a preparar as malas para o conhecer, saiba que para alcançar a aldeia piscatória de Monte Trigo é preciso levantar-se bem cedo antes de se fazer à estrada.

Praia de seixos no Monte Trigo
Partindo do centro de Porto Novo é preciso cerca de duas horas de carro. Primeiro, uma estrada asfaltada interligada com outra calcetada e por fim a maior parte do percurso é feito por caminhos de terra e pedras que desafiam os motores mais potentes dos carros no alto das montanhas, ou não estaríamos nós na Ilha das Montanhas. No final da viagem ainda é preciso fazer-se ao mar num bote para completar a ligação entre a localidade de Tarrafal de Monte Trigo e Monte Trigo. Este trajecto dura quase quarenta e cinco minutos sobre o mar onde está um dos maiores bancos de pesca do país. Nesta altura a decisão de deixar o telemóvel ligado é irrelevante pois nenhum dos serviços das operadoras móveis estão disponíveis. Telefonar aqui só é possível pela rede fixa. 

Pedro Pires, o padeiro dos pescadores 

Pedro Pires mostra com orgulho 
o forno da sua padaria
Numa aldeia piscatória composta por cerca de duzentas e oitenta e quatro pessoas o mais provável é que fossem todos pescadores ou dependentes da pesca. Mas, Pedro Pires, de 57 anos e morador local, foge à regra e é padeiro. Dono da única “indústria” da zona, a sua padaria produz pães e bolachas com os cerca de dezoito quilos de farinha que levam dois dias para serem vendidos à população. O curioso é que Pedro Pires vende um pão de 100 gramas por sete escudos quando o preço máximo que se pode aplicar é de doze escudos. “Os sacos de farinha e açúcar são trazidos pelos pescadores nos botes e eles não me cobram nada. Por isso vendo a um preço justo à comunidade”, explica o padeiro que já criou sete filhos com os lucros deste negócio que “não o deixa dormir sem jantar”, como conta orgulhoso. 


Divertir-se em Monte Trigo 


Crianças descansando em 
um colchão na praia
Monte Trigo não tem muitas formas de diversão. A pequena praia de seixos e alguma areia preta e fina que serve para chegada e partida dos pescadores e visitantes é o local de eleição das suas gentes. Na sua orla encontram-se sempre crianças semi-nuas queimadas pelo sol que com pequenas canas de pesca vão apanhando peixes de pequeno porte. Cada peixe trazido para terra é motivo de discussão e risos de exibição entre as crianças. Se as possibilidades não derem para seguirem com os estudos já estarão a treinar naquele que poderá vir a ser seu futuro ofício e sustento da família. 

Após a faina no mar os fins-de-semana são habitualmente dedicados ao futebol. No minúsculo campo de terra batida que fica junto à praia defronta-se Marítimos e Natchok, as duas únicas equipas locais. Durante o jogo o grito “bola ao mar” faz parar a partida até que alguém vença as ondas e traga o esférico para terra debaixo dos braços. Que recomeçe o jogo. 

Os serões das noites são passados em família à frente da televisão. A localidade recebe os sinais dos canais RTP1, RTP-África, SIC, SportTV, Record Cabo Verde e Record, mas do canal da Televisão de Cabo Verde (TCV) nem sinal. O mesmo acontece com a Rádio de Cabo Verde (RCV) que não é sintonizada em Monte Trigo. 


Electricidade das 18:30 até 23:30 

Graciete Fortes
Em Monte Trigo as pessoas conservam os alimentos em frigoríficos a gás. Isto porque a energia eléctrica só está disponível no final da tarde até antes da meia-noite, como nos conta Graciete Fortes, uma moradora da localidade de 28 anos. “Aqui só temos electricidade durante todo o dia na festa de Santo António [3 de Junho] e no fim do ano”, explica Graciete e avança que todas as casas pagam 710 escudos mensais à Câmara Municipal pela energia eléctrica. Enquanto isso afirma que não pagam a água fornecida pelo Serviço Autónomo de Águas do Porto Novo porque a empresa espera que todas as casas estejam ligadas à rede antes de começar a cobrar. “Mesmo assim aqueles que não têm água canalizada podem comprar uma lata de vinte litros por um escudo na santina local. Eu, por exemplo, com duzentos escudos tenho água para cerca de três meses aqui em casa”, diz sorrindo. 

Por causa do isolamento os serviços de saúde são assegurados por um Agente Sanitário. As mulheres grávidas têm que fazer todo o percurso pela estrada para terem os filhos em Porto Novo ou então pela via marítima para darem à luz na ilha vizinha, São Vicente. 


A despedida… 

Durante a nossa viajem por Monte Trigo paramos numa casa para almoçar. Jorge, o “guia” que nos acompanhava durante a visita deixou sua bolsa com alguns litros de feijão e peixe seco no passeio da estrada e subiu ao terraço connosco para comer. Perguntámos-lhe se não tinha medo que alguém lhe roubasse as coisas ao que ele respondeu: “quem é que vai apanhar a bolsa se não lhes pertence?” e terminou sua refeição sem grandes preocupações. Na hora da partida despedimo-nos e Jorge apanhou sua bolsa e seguiu para casa. Ainda há lugares assim em Cabo Verde

Publicada (também) no Jornal A NAÇÃO 

Odair Varela é jornalista no jornal A NAÇÃO em Cabo Verde (na ilha de São Vicente) e também autor do blog: daivarela.blogspot.com 

2 comments:

momo disse...

Ahhhh que lindo blog y fotos...

Madame Frufru disse...

Nossa Odair, fiquei super comovida com este post. Narração perfeita. Aldeia fantástica!

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